Sobre um déjà vu

17:25


 Estamos na rodoviária. Novamente. O sol ainda não nasceu e todos têm olheiras profundas revelando que a noite de sono foi perturbada e interrompida. Tudo está se repetindo: os cheiros, os sons, as pessoas, os pequenos sorrisos e as lágrimas. Aqui estamos nós, pela terceira vez em menos de um ano.
 Quando lia sobre partidas e perdas sempre sorria e agradecia ao Destino por -até então- nunca ter me tirado ninguém. Porém agora, a simples menção da palavra despedida me deixa com um nó no peito e na garganta, um sentimento que não desejo à nenhuma outra pessoa.
 As cadeiras coloridas do local estão encardidas e eu me recuso a sentar, não pela sujeira, mas pela inquietude que toma conta de minhas pernas. Ando em círculos e a morena acompanha meus passos com desprezo e preguiça. "Senta aí, guria." Nego com a cabeça e mordisco a unha do dedo mindinho. "Vai ali comprar um café pra ti, vai." O ruivo abraça meus ombros e respira ali, tento espiá-lo por sobre os ombros, mas ele me impede. "Olha aquela mulher, pare de ficar se estressando ou tu ainda ficará igualzinha à ela." Sussurra em meu ouvido e eu abafo o riso, nosso último riso quiçá.

 Bom dia Santa Catarina inicia e todos olhos se voltam ao relógio e depois a ele. Me solta, procura o negro alto e sorri. Este lhe entrega uma mochila preta, toda velha e bem usada e senta-se na cadeira vermelho sangue, se recusa silenciosamente a ser o primeiro. As duas morenas me olham, dão sorrisos e a mais alta me estende os braços, me sinto uma criança sendo jogada de um lado ao outro, de colo em colo. Nego com a cabeça e abraço meus próprios braços.
 O jornal matutino vai para o comercial e a voz feminina irritante anuncia o ônibus. Ele escolhe começar a se despedir pela mãe, sorrio e lembro que o anterior a ele começou pela cachorrinha. Depois de abraços e sussurros de uma mãe pequena ao lado do filho ele passa para a avó, que já têm lágrimas nos olhos de coruja. Os irmão são os próximos, cheios de sorrisos, pedindo gols e medalhas. Depois se dirige a nós e então vejo que os olhos verdes estão cobertos de lágrimas que pouco provavelmente saíram dali, homens.     Começa pelo japonês que mal teve tempo para conhecer, depois passa para a ruiva que treme, mas não chora. Chega então a minha vez.
 Lembro-me muito bem de todas as aventuras que já enfrentei ao lado do -agora- homem à minha frente. Sorrio me lembrando que a porta do banheiro nunca mais foi trancada por sua culpa e que a praça de alimentação nunca mais será uma simples praça depois do nosso teatro. A primeira lágrima cai quando recordo das cinco ruivas que apostamos, de como todas elas derreteram-se aos seus encantos e de como eu gargalhei do rubor masculino. Seus braços me esmagam contra o peito largo e forte, me sinto sem ar e feliz com isso. Percebo que durante anos fui uma garotinha ao lado de um moleque que me transformava em outro moleque e que agora sou a mesma garotinha contra os braços de um homem. "Não chore, guria. Até parece que não é macho!" Dou um tampa em seu peito e limpo o olho, "Teu reboco sujou.", ele me avisa gargalhando. Os dedos grossos e de unhas inexistentes passam com cuidado sob meus olhos, suspira e diz que rímel é uma bosta. "Não beba, não foda e não case." Minhas bochechas esquentam e ele bate na mão do negro de brincos 'estilosos', "Não sei porque estão chorando, janeiro eu estou de volta. Praia e vagabundice me atraem." Todos gargalham e eu me perduro em seu pescoço, um beijo na testa, outro na bochecha e sussurro: "Confia em ti, tu é o melhor e sabe disso. Não faz nenhuma merda, pelo amor que tu tem a Deus. Fica com Ele e quando sentir saudades liga. Liga, tu entendeu? Se cuida, faz uns gols e dedica a mim que te aguento de fossa. Eu te amo, muito, muito. Não esquece." sinto uma lágrima que não é minha fazer caminho em meu pescoço, solto dele e suspiro. Parte para o adeus masculino, é um pouco estranho vê-los se abraçando, fazendo promessas e soltando lágrimas esporádicas. Percebo que todos eles tem a mesma certeza que eu: nossas vindas a este lugar se tornaram frequentes.
 A mulher de nariz entupido anuncia o ônibus pela última vez e ele nos dá um último adeus, aperto firme entre os dedos a pulseira de borracha que roubei em nossa última noite de gandaia e aceno sorrindo."Boa sorte, viadinho." grita algum dos meninos, um dedo do meio surge por entre as janelas do ônibus.
Deito a cabeça no ombro da ruiva, nenhuma de nós duas choramos, mas as lágrimas pinicam meus olhos e sei que preciso de um lugar só meu o mais rápido possível. Melhor seria se eu conseguisse me acostumar com algo tão fatídico como a partida. Mas o coração é assim: teimoso e inflexível, sempre à procura de alguma dor de cabeça.

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